Apostar na “rua” ou trazer as crianças para o treino?

No jogo, o prazer e a eficácia do treino
24 de abril de 2020

Apostar na “rua” ou trazer as crianças para o treino?

 

Wilton Santana

Filho, na escolinha há muitos meninos e todos aprendem as mesmas coisas. Você terá de fazer somente o que o professor mandar. Na sua idade, o mais importante e gostoso é brincar com a bola, sem regras e compromissos. É a melhor maneira de desenvolver a habilidade e a criatividade. Quando crescer, e se houver jeito, poderá ir para as categorias de base dos clubes profissionais. Aí vai aprimorar a técnica, escolher a sua posição, conhecer a tática e fazer muitos exercícios físicos. No momento, seu corpo e sua mente ainda não estão preparados para assimilar essas coisas. Tudo tem a sua hora certa. (Tostão)

 

Chamou muito a minha atenção a atitude do Bayer de Munique, um gigante europeu, de notificar, meses atrás, que entraria em um processo gradativo de desativação das suas categorias Sub-9 e Sub-10. Muito intrigante! Ora, o Bayer poderia ter as crianças da sua redondeza que quisesse no seu centro de treinamento! Então, por que não tê-las?

Percebo, igualmente, que essa atitude é distinta da que se faz no Brasil, onde, cada vez mais cedo, as crianças são inseridas nos clubes de futebol ou de futsal ou em ambos.

Portanto, ao menos nesses casos, há um antagonismo de ideologias. Isso me leva a questionar: apostar na “rua” ou trazer as crianças para o treino? – a primeira de outras perguntas que pretendo repercutir neste texto.

 Prática deliberada e jogo deliberado

Usei acima, sem discriminar, os conceitos de prática deliberada e de jogo deliberado. Representam contextos distintos. A prática deliberada é voltada, intencionalmente, para o desempenho. Há um projeto de futebol por detrás. Utiliza-se certa pedagogia. Para tanto, o treinador estrutura a prática, criando o “ambiente de aprendizagem”. Estruturar a prática tem a ver com definir objetivos (para que ensinar), optar por conteúdos e momentos de abordá-los (o que e quando ensinar), adotar certo método (como ensinar) e a duração das atividades (por quanto tempo). Nessa prática, sistemática, as crianças “cedem” a organização das atividades para o treinador, tendo os seus desejos substituídos pelos dele. A literatura em geral reporta que esse tipo de treino tende a ser rígido, repetitivo e mecanizado, distanciando-se da diversão.

Já o jogo deliberado é o que se conhece por “jogar bola”. A primeira vez que me deparei com esse termo foi em um texto de Jean Côté, um eminente pesquisador da Queen’s University (Canadá), no livro “Jogos desportivos: formação e investigação”. Em Pathways to expertise in team sport (“Caminhos para a excelência esportiva”), Coté explica que essa configuração de prática “permite que os jovens cometam erros sem serem criticados; sejam criativos sem seres julgados; tentem habilidades novas sem serem orientados sobre como executá-las e façam esporte sem um foco explícito no aspecto técnico da execução” (tradução livre). Portanto, a prática não é estruturada, mas livre, espontânea, autodirigida, sem a ingerência pedagógica de um treinador. As regras são criadas pelos próprios jogadores e para satisfazer os seus interesses. É o que se pratica na “rua”, onde se joga criança nova junto de mais velha, o que for combinado jogar, sem o rigor do treino e sem a necessidade de que expectativas alheias por desempenho sejam atendidas. Logo, é uma prática inclinada à diversão.

Efeitos da prática deliberada e do jogo deliberado

Esse é o ponto. É a partir daqui que farei, minimamente, algumas deduções sobre a atitude do Bayer de Munique. Recorro ainda ao Côté, para quem o jogo deliberado traz “vantagens motivacionais e no aprendizado que têm sido associadas, por exemplo, ao desenvolvimento da excelência esportiva na idade adulta (tradução livre)”. Dentre as possíveis vantagens estaria a de livrar as crianças de uma prática estruturada, conduzida por adultos e, portanto, de um excesso de dependência no aprendizado de competências. Outra seria livrá-las da especialização precoce e dos seus efeitos negativos. Outra seria de que apresentássemos uma prática que emocionasse as crianças, isto é, que as envolvesse afetivamente. E, talvez, seja nisso que o clube alemão aposte. Foi o que publicaram: que as crianças tenham mais tempo para desenvolver habilidades no seu ambiente natural, sem pressões por desempenho, além de terem a oportunidade de explorar sua liberdade criativa e outros esportes nesse tempo de lazer.

Não deixe passar despercebido: essa declaração permite inferir que a expectativa do Bayer é de que a biografia das crianças até os 10 anos contemple aproximações com outros esportes (diversificação esportiva) e seja construída em um ambiente, em teoria, voltado para a diversão e não para o desempenho.

Isso tudo me leva a pensar que se quer evitar algo. Ou que se quer respeitar algo. Ou que se está atrás de algo novo. Ou que se quer resgatar algo. Quando penso na formação do jogador brasileiro, que é o que de fato me interessa, ficaria com todas essas hipóteses, porque, inegavelmente, o nosso jeito de “jogar futebol” já foi diferente. Algo parece que se perdeu.

O que se perdeu?

Para repercutir esse tema, escolhi algumas passagens, dentre tantas possíveis, entre aqueles que se debruçaram sobre o jeito brasileiro de se jogar futebol, disponíveis no livro “Educação física, esporte, lazer: aprender a aprender fazendo”, do João Bosco da Silva.

Até a década de 70, mesmo não conquistando todos os campeonatos mundiais, o Brasil encantou o mundo com seu futebol espontâneo, criativo, consequência de uma cultura popular impregnada de valores simples, humildes, expressivos e imprevisíveis, de extraordinária beleza.

É isso o que se perdeu: o jeito espontâneo e criativo de se jogar futebol. Houve lampejos disso aqui e ali? Sim. Em alguns poucos times e seleções. Mas penso que hoje, de modo geral, sobretudo no âmbito interno, estamos longe disso. Joga-se futebol, é certo. Compete-se, é certo. Os jogadores continuam a decidir em campo, é certo. Mas o fazem de forma criativa? Este é o ponto: não há como negar que a maioria esmagadora dos jogadores não surpreende expectadores e adversários! Sem isso, o que resta? Um futebol empobrecido e sem imaginação. Feio. Comum.

Por que entramos nessa?

 Quando o futebol criativo adormeceu?

Difícil responder. Sinto-me, mais ou menos, como Santo Agostinho quando se referiu ao tempo: sei o que é desde que não me peçam para explicar. Mas vamos adiante:

Há indícios de que a decadência do futebol brasileiro coincide com o surgimento da “escolinha de futebol”.

É uma afirmação corajosa! Os professores de futebol não deverão gostar dela. Dirão: “Nós?” Eu os compreendo. Deve, de fato, haver mais coisas aí – sinto-me, mais uma vez, como Santo Agostinho. Mas o fato é que o futebol, que era aprendido na rua, passou a ser ensinado nas escolinhas. E ensinado pelos professores de futebol, certo?

Bosco escreveu isso depois de ver o futebol brasileiro fracassar na Copa do Mundo de 1990, na Itália. Ele dizia: “Não é por terem perdido, mas como perderam. Aquilo não era o futebol brasileiro”. Ele se reportava ao futebol que ele não reconhecia. Que não o representava. Faltava algo. Ele queria ver, mas não viu, aquele

(…) futebol como forma de expressão de uma cultura popular espontânea, criativa e rica de “improvisos”.

O qual, na sua visão, sensível e intuitiva, dera

(…) lugar à fragmentação do corpo, à reprodução de técnicas, à “robotização”, à submissão do jovem a regras rígidas, arbitrariamente estabelecidas.

Abre parênteses: será que é disso que o Bayer quer fugir? Fecha parênteses.

Isso também é inegável! Vários estudos de mestrado apontaram que, nas escolinhas de futebol e de futsal, que proliferaram a partir da década de 1990, “joga-se pouco e exercita-se muito”. Tenho a minha dissertação favorita nesse tema: “O futebol que se aprende e o futebol que se ensina”, defendida em 1999, pelo Alcides Scaglia, na qual ele revelou a discrepância entre o futebol aprendido pelos ex-jogadores de futebol (proprietários de escolinhas de futebol) e o futebol que eles ensinavam nas suas escolinhas. Fica, por extensão, difícil discordar de que a escolinha soterrou algo. Novamente o João Bosco:

Ao impor processo de modelagem, com movimentos específicos em série, igual para todos, além do intenso treinamento precoce e rígido sistema tático, a “escolinha” matou a variável mais interessante do futebolista: a espontânea, criativa, original e imprevisível capacidade de surpreender os “jooes” do mundo.

A metodologia de ensino do futebol, equivocadamente (lembre-se das dissertações de mestrado que investigaram o tema!), não considerou “ingredientes da rua”, como a liberdade, a criatividade, a espontaneidade, o jogo. Logo, como esperar o surgimento de jogadores talentosos?

Na realidade, o talento sempre surgiu na cultura popular e não nas adestradoras escolinhas de futebol. A maior parte dos atletas brasileiros nasceu nos segmentos populares mais pobres e desenvolveu habilidades naturalmente, em processo essencialmente lúdico, sem qualquer limite.

Esse “naturalmente” precisa ser lido como “culturalmente”, pois há uma pedagogia na “rua”. Atente para as expressões-chave: “cultura popular espontânea”, “capacidade de surpreender”, “processo essencialmente lúdico”. Ligue as pontas: parece que sabemos o que se perdeu (o jeito espontâneo e criativo de se jogar futebol) e o porquê (soterramos, nas escolinhas, os ingredientes da pedagogia da “rua”). Logo, não me parece difícil deduzir como reaver o jeito criativo de se jogar futebol. Deduzir é a parte fácil.

 A “rua” da minha infância

Jogar bola na “rua” foi um tempo da minha vida. “Rua” significou o campinho de terra, o quintal, o asfalto, o terreno baldio, a quadra áspera da escola. Na “rua”, o futebol é o jogo; o jogar bola em pequenos grupos e, também, sozinho. Jogos que alguém te ensina e outros que você inventa. Todos os jogos possíveis para se divertir. Não muitos! Mas suficientes para que se queira repeti-los diariamente. Eu fiz isso. Por anos. Até acabar a “rua”. Que rareou e acabou quando começou o treino no clube e as vitórias que valiam pontos.

A “rua” da minha infância ainda existe? Olha, do jeito que foi, se existe, não sei onde está. Não a vejo. E também não escuto seus ecos por onde ando. Os treinadores, com os quais convivi nos últimos 25 anos ensinando e aprendendo sobre pedagogia do treino, não falam dela. Falam de seus clubes. Escolinhas. Treinos. Competições.

A “rua” acabou?

Não! Enquanto tiver crianças jogando bola, entre si, com as suas regras, haverá “rua”. Pode não ser a “rua” da minha infância. Pode não ser farta como era. Soberana. Mas cada um tem a sua “rua”. Verifico que não há mais a “rua” da minha infância na infância do meu filho. Mas há a “rua” dele. Ao modo dele. Nem que seja no recreio do colégio. Na antessala do treino. Na quadra do condomínio. Dentro de casa.

Daria para trazer a “rua” para o clube?

 Essa pergunta é tão relevante, que vou reforçá-la com outras duas, relembrando de coisas que já expus neste texto:

– daria para elaborar, no clube, um ambiente de aprendizagem no qual as crianças pudessem explorar sua liberdade criativa, livrando-as do excesso de dependência no aprendizado de competências?

– daria para criar, no clube, um ambiente de aprendizagem no qual as crianças pudessem cometer erros sem serem criticadas, fossem criativas sem seres julgadas, tentassem habilidades novas sem serem orientadas sobre como executá-las e fizessem esporte sem um foco explícito no aspecto técnico da execução?

Honestamente, não creio que a “rua” da minha infância possa ser trazida para o clube. Porque não creio que o clube possa ser “rua”. E que esta possa ser repetida no clube. Mas isso não quer dizer que “algo” da “rua” não possa vir para o clube. Mais ainda: de que “algo” da “rua” tenha de estar, obrigatoriamente, no clube/escolinha, sob o risco de, em não estando, comprometer a formação de bons jogadores de futebol. Por isso, vou responder assertivamente às duas questões anteriores.

Nessa direção, corroboro a tese que infiro das teses defendidas, cada um ao seu modo e no seu momento, por João B. Freire e Alcides Scaglia, disponíveis, respectivamente, nos livros “Pedagogia do futebol” e “O futebol e as brincadeiras de bola”: aprender futebol pressupõe aprender brincadeiras de futebol.

E essa me parece a saída teórica desses autores para a pedagogia do futebol: “colorir” o ambiente de aprendizagem com as “cores” do ambiente de “rua”. Portanto, de jogo. Na prática, tratar-se-ia de criar um ambiente de aprendizagem, logo, intencional, voltado para o desempenho, sem descartar a diversão, a imprevisibilidade, o desafio, o risco e a complexidade; em que aprender futebol significasse brincar de futebol – essa parte, semelhante à “rua” da minha infância. É a proposição de prorrogar a “rua” no treino, conectar a prática deliberada e o jogo deliberado, criando a prática de jogo, que o Alcides chama de Pedagogia do Jogo. Isso é possível de se fazer no clube. Será tão profícuo como a “rua” para as crianças? Sinto-me como Santo Agostinho.

A essência da “rua” em todas as escalas

Se soube me expressar até aqui, posso avançar: o clube faz algo que a “rua” não faz: introduz e aprimora o aprendizado da complexa teia do jogo coletivo. Igualmente, é plausível, e até mesmo esperado que, mergulhadas na cultura do clube, essa teia seja tecida de um modo particular, segundo as ideias sobre como jogar futebol predominante no clube. O que se espera, na linha de argumento deste texto, é que isso não deveria ser disseminado fora de um ambiente de jogo. Aí está o desafio para a pedagogia do treino: tecer a complexa teia do jogo coletivo, com as ideias de jogo do clube, em um ambiente de aprendizagem imerso no ambiente de jogo. Bastaria que os treinadores prorrogassem e cultivassem o ambiente de jogo (da “rua”) quando elaborassem o ambiente de aprendizagem (do clube) sem perder o DNA do clube. E isso não serve apenas para crianças, mas para os jogadores iniciados e, também, os profissionais. Ou seja, o maior desafio é sustentar o ambiente de jogo em todas as escalas, de modo que os jogadores, independentemente da sua experiência, enfrentem desafios, corram riscos, lidem com a imprevisibilidade, divirtam-se, atualizem suas competências para jogar.

 Modo “fora de jogo”

Tostão (sempre ele!) alardeou, na epígrafe deste texto, que as escolinhas mutilam a habilidade e a criatividade das crianças que querem aprender futebol. Na prática, indo para as escolinhas, elas aprenderiam a treinar antes de jogar bola. Esse modo de ensinar futebol desacredita e corrompe o nosso jeito particular de aprender futebol. Muito possivelmente isso explique a razão de os jogadores jogarem de modo tão pouco criativo. Ora, de tanto treinar o modo “fora de jogo”, não aprendem o modo “em jogo”.

Do jeito que a coisa vai, as escolinhas de futebol não acabarão. Estão aí há, pelo menos, 30 anos! Inclusive, esse sistema, de tão sofisticado, e isso não significa que seja promissor, já criou subprodutos, como as franquias, de grandes clubes e de craques e, até, o personal soccer, o maior apaixonado pelo modo “fora de jogo”.

Parece-me, portanto, que não é mais possível “ser como foi” e evitar que um adulto determine, cada vez mais cedo, “por que”,  “o que”,”quando”, “como” e “quanto” treinar.

Tudo leva a crer, igualmente, que os clubes, cada vez mais cedo, captarão as crianças para treiná-las. Isso me leva a responder ao título deste texto – não que eu quisesse, não que eu celebre, não que eu me resigne – que melhor seria trazê-las para o treino. Sim! Por quê? Porque a questão passaria mais por ajustar a pedagogia do treino do que adiar o momento em que as crianças começarão a treinar. Afinal, se elas não estiverem no seu clube, sob certo método, estarão em outro lugar, sob outro método, que pode, inclusive, lhes furtar o jeito brasileiro de aprender futebol. Então segue a resposta completa: melhor seria trazê-las para o treino e, neste, cultivar vestígios da “rua”.

 A “rua” possível

Fica, ainda, a esperança de que as crianças, seja onde for, sejam subversivas o suficiente e continuem jogando bola na “rua”, para além dos treino do clube. A “rua” que conseguirem criar para si mesmas.

 

Ao longo deste texto, citei alguns livros. Divirta-se!

 

Wilton publicou, em 2019, o livro “Pedagogia do futsal: jogar para aprender” (Companhia Esportiva).

5 Comentários

  1. Ricardo Ferreiea Machado disse:

    Wilton e Tostão são na minha opinião como o Pelé e Garrincha , ou vice-versa. Mas, em vez dos pés usam a caneta para escrever textos fora de série! Sobre o tema, acredito eu, ainda na função de gandula, que o ponto central é a liberdade e também a fantasia. A figura de um adulto, treinador ou professor, o nome não importa, inibi a criança de ser somente criança… O brincar e o jogar, se transforma, mesmo sem querer, em treinar. Quebra-se o cristal. Criança não é feita pra treinar. O mundo imaginário e lúdico é então, de certa forma, às vezes mais, outras vezes menos, mas invariavelmente, invadido, bloqueado., contaminado,. Sim, a mera presença do adulto gera inibição, cobrança, julgamento… Alguém já pensou em fazer amor com a amada, sendo observado por um estranho? O adulto sempre será um elemento estranho no mundo imaginário infantil. A criança deixa de ser quem quer ser, para ser o que o adulto, espera dela, mesmo sem saber , mesmo sem querer. O adulto sempre será um espião. Assim, acredito ser necessário, para o bem das crianças e do futebol, que os adultos as deixem brincar de bola em paz.

    • Pedagogia do Futsal disse:

      Ricardo, que lindo e profundo o seu comentário. “Alguém já pensou em fazer amor com a amada, sendo observado por um estranho?” foi sensacional. Muito obrigado pelo elogio.

  2. Célio Antonio da Silva disse:

    Excelente trabalho

  3. Pedagogia do Futsal disse:

    Obrigado, Marcos! Bem-vindo!