No jogo, o prazer e a eficácia do treino

Criador de resistências
10 de março de 2020
Apostar na “rua” ou trazer as crianças para o treino?
3 de novembro de 2020

No jogo, o prazer e a eficácia do treino

 

 

Wilton Santana

 

Anos atrás, uma das singulares frases de Jean Piaget desencadeou um profícuo aprendizado em mim: “A afetividade é o combustível da inteligência”. Eu estudava, naquela época, a relação entre a pedagogia do esporte e a moralidade infantil. Meu professor na Unicamp, Ulisses Araújo, explicou que a afetividade, em Piaget, precisava ser lida como “interesse”. Lê-se, portanto, “O interesse é o combustível da inteligência”. Compreendi, a partir disso, de forma inequívoca, reforçando a minha intuição, assentada em como aprendi futebol, de que as minhas dinâmicas de treino, para mobilizar a inteligência dos jogadores, precisavam ser desafiadoras e atraentes; que se isso acontecesse, ou seja, se os jogadores estivessem envolvidos afetivamente com o que praticavam, sua inteligência seria provocada e, sem isso, seria atomizada.

Isso que foi posto bastaria para explicar a relevância de as dinâmicas de treino terem o caráter de jogo? Há mais coisas, certamente. Mas entendo que se trata de um raciocínio promissor para quem ensina esporte. Por quê? Porque jogos contêm desafios. Desafios despertam o interesse. Interesse, como visto, é o combustível da inteligência.

 

Desafios para quem?

 

Mais perguntas: em que fase da aprendizagem, em que faixa etária e em qual categoria se pode prescindir da inteligência? Em nenhuma. Quem precisa treinar interessado: o jogador iniciante, o iniciado ou o confirmado? Todos. Logo, não se deve jogar menos em nenhuma fase.

Além de uma necessidade, jogar é um prazer. Um desfrute. Para explicar isso, recorrerei a algumas frases-chave de um texto muito instigante, do professor Júlio Garganta e colaboradores, intitulado “Fundamentos e práticas para o ensino e treino do futebol”. Em particular, usarei algumas citações do item “Primeiro brincar ao jogo: o treino pode esperar (p.201-203)”. Inicio com esta:

O que todos os praticantes têm em comum é que eles jogam porque gostam e porque querem desfrutar das infinitas possibilidades que o jogo pode oferecer.

Detenha-se na frase: (1º) gostar de treinar passa por jogar (“jogam porque gostam”); (2º) é o jogo que contempla a diversidade lúdica que captura o interesse do jogador (“querem desfrutar das infinitas possibilidades que o jogo pode oferecer”). O ciclo vai se fechando. Mas ainda falta dizer algo. Ainda que esse algo não diga tudo. Porque não há nada que se diga que se diga tudo.

 

Algo a mais no pacote do “treinar com gosto”

 

Imbricado com o prazer, no jogo, outro ingrediente se manifesta: a busca pela excelência, que se traduz na atitude de “fazer bem feito”, “fazer pra valer”, “querer ser melhor do que se é a cada momento”, “não ficar pra trás”. Portanto,

[...] apesar de se revelar necessário que brinquem, joguem e desfrutem, é igualmente importante que a prática desportiva [...] se norteie pela edificação de atitudes que conduzam ao gosto pelo esforço, pela superação e pelo aperfeiçoamento

Ora, o jogador envolvido afetivamente com o treino não é desleixado, descomprometido e preguiçoso. Se os fosse, treinaria mal. Ao contrário, tomado pelo jogo, pelo treino que o desafia, transforma-se num contumaz competidor (“gosto pelo esforço”) a disputar centímetros e quaisquer vantagens de natureza gestual-espacial-física-emocional. Treinando com gosto, aprende a competir, a ser eficaz e, consequentemente, a transpor dificuldades (“superação”).

Portanto, o prazer de melhor jogar pode ajudar a forjar o prazer de mais e melhor aprender e treinar, e vice-versa.

Quero registrar o “vice versa”:

Portanto, o prazer de mais e melhor aprender e treinar pode ajudar a forjar o prazer de melhor jogar.

Visto por outro lado, será que a ausência do jogar, do envolvimento afetivo, poderia hipotecar a eficácia do jogador no treino? Sim!

De fato, a busca do prazer pelo jogo e do gosto pelo treino deve ser uma preocupação da qual não se deve abdicar, sob pena de se comprometer a eficácia

Agora que já se tem o jogo como o gatilho do prazer, da excelência-eficácia de quem treina, convém perguntar: qual a herança de quem treina jogando?

 

Competências situacionais

 

Costumo dizer que “se você ensina pelo jogo, o seu jogador corre o ‘risco’ de aprender a jogar”. Desculpem a ironia. Mesmo que proposital. Ora, mas não te parece óbvio que a opção de ensinar mediante jogos, com situações desafiadoras, pertinentes e semelhantes às do jogo, levará os jogadores a se interessarem pelo treino e aprenderem a jogar cada vez melhor? A mim parece. Segundo nossos colaboradores neste texto, quem treina jogando aprimora as chamadas

[...] competências situacionais, intimamente relacionadas com a capacidade para gerir as mudanças incessantes produzidas no contexto de jogo

O que um jogador precisa para “gerir as mudanças incessantes produzidas no contexto de jogo?” Cabe aqui muita coisa! E pode-se escrever sobre isso de formas variadas. Depende do “óculos” que você usa. Depende de quem você leu. Depende da sua biografia. Minha narrativa neste texto considerará o que é específico (jogar futebol) e não ao que poderia ser Específico (jogar o futebol de um clube). Nesse sentido, diria que, ao se treinar jogando, três competências essenciais “contaminam” os jogadores:

– a capacidade para gerir o espaço de jogo que se ocupa e se desocupa em relação à meta que se ataca e que se defende;

– a capacidade de interagir para atacar e para defender;

– a capacidade de ajustar os movimentos com bola, acelerando, desacelerando, mudando de direção.

E mais três que, no meu entendimento, diferenciam os jogadores:

– a capacidade de improvisar;

– a capacidade de dissimular o que se pretende fazer;

– a capacidade de antever as intenções alheias e antecipar-se aos lances.

 

Sobre a mesa de estudo

 

Não dá para negligenciar o fato de que ter jogadores “treinando com gosto” significa muito em se tratando de aprendizagem. O caminho para despertar esse “apetite” é criar um ambiente de treino desafiador. O jogo, como meio de treino, parece ter a alquimia de elevar o gosto pelo treino e provocar a inteligência dos jogadores. A herança para os jogadores dessa promissora interação metodológica entre o prazer e a eficácia é a aquisição e o refinamento de competências para melhor treinar e jogar.

 

Wilton é Head Coach da Iniciação do Club Athletico Paranaense

2 Comentários

  1. Vanderlan ramos disse:

    Vanderlan ramos Silva , Gostei muito
    Eu sou
    Professor educação física e treinador da escola de futsal e futebol vandergol em cachoeiras de Macau RJ , sempre que fazemos treinos de forma desafiadora e com um grau de complexidade de acordo com a faixa etária da idade , tenho
    Certeza que desperta um querer a mais nos atletas , em fazer algo diferente e que mexa com o seu brio e a sua inteligência , mais sempre buscando o seu crescimento e dando a cada atleta uma experiência , para quando chegar em um jogo , eles poderem não sentir tanto está dificuldade que os adversário possam a exigi-lo e que eles possam se sair bem .

  2. Guilherme Dengo disse:

    Olá, Wilton! mais um texto excelente que traduz exatamente o que deve ser feito na pedagogia do esporte, entretanto vejo que muitas vezes não é o que ocorre com outras modalidades coletivas de invasão, como é o caso do handebol e basquete. Será que elas estão cometendo os mesmos erros da metodologia tradicional (tecnicista) que era muito utilizada no futsal a pouco tempo?