Criador de resistências

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Criador de resistências

Wilton Santana

 

O conceito de “prática ingênua” está num livro extraordinário, de Anders Ericsson e Robert Pool, que se chama “Direto ao ponto: os segredos da nova ciência da expertise”. Eles a conceituam como a prática que exige “essencialmente, apenas desempenhar alguma ação repetidamente e esperar que a repetição por si só vá melhorar o seu desempenho”. Isso se aplicaria em qualquer atividade humana. Neste espaço, refiro-me à prática ingênua aplicada no contexto esportivo.

 

À espera de um milagre

 

 Lê-se no livro que a atitude de se repetir ações continuamente “por si só”, embora automatize as habilidades, não as aprimoram. Por quê? Porque deixa de impor desafios sobre o atual nível de desempenho do praticante. Ou seja, praticar as ações sempre do mesmo modo e fora do contexto em que são exigidas (“por si só”) deixa de exigir novas soluções. Desestimula-se, portanto, a improvisação, os ajustes repentinos no movimento, que é, exatamente, o que os jogadores habilidosos fazem.

Quem proporia uma prática ingênua? Uma mente ingênua. Uma mente à espera de um milagre. O milagre de se “desempenhar alguma ação repetidamente e esperar que a repetição por si só vá melhorar o seu desempenho”.

 

“Bolas ruins”

 

Isso me lembra os dias em que me propus a aprender tênis. O método do meu treinador era o de me conduzir a repetir e memorizar técnicas, seguido de um “jogo” no final. Eu ia bem na primeira parte, porque pouco sabia e porque era mais fácil. No entanto, fracassava na segunda parte, sobretudo, se ele jogava minimamente à vera. Decidi adicionar uma medida ao processo: “jogar mais”. Desse modo, deixei de praticar as habilidades “por si só” como o maior volume e, jogando, fui construindo um mínimo repertório tático-técnico personalizado, absolutamente atrelado às minhas novas experiências (“jogar mais”), porque nelas construídas. O fato é que eu precisava jogar! Fugir da prática comum. Ir além. Precisava rebater “bolas ruins”, exercitar prever, dissimular, improvisar, sair da minha zona de conforto. Foi o único jeito de melhorar na segunda parte do treino do meu treinador.

Essa é uma verdade fundamental em relação a qualquer tipo de prática: se você nunca se pressiona para ir além da sua zona de conforto, você nunca se aperfeiçoará (Anders Ericsson e Robert Pool).

Antes que alguém pense que jogo tênis, diria que “como jogador de tênis, sou (fui!) um bom jogador de futebol”.

 

Improvisar para não estagnar

 

Se você entendeu até aqui, poderia deduzir duas coisas: a primeira de que “a repetição de uma ação “por si só” leva à estagnação”; a segunda de que “a improvisação é o antídoto da estagnação”. O que isso poderia desencadear em se tratando de pedagogia do esporte? Diria, minimamente, que o maior volume de treino deveria incidir sobre as práticas de jogo, que são avessas às rotinas de treino que priorizam os estereótipos motores e cognitivos. No lugar de se pensar ambientes de treino em que se priorizasse a repetição “por si só”, entrariam os ambientes desafiadores e carregados de incerteza. Apostar-se-ia, desse modo, naquilo que afeta o desempenho, pois o treino serve para se fazer coisas que antes não se conseguia. Na prática, o treinador planejaria situações-problema que desafiassem as atuais competências do jogador. Isso, por si só, desencadearia a necessidade de os jogadores criarem novidades para vencerem aqueles desafios.

Penso que essa estratégia, de levar o praticante a “fazer algo que não conseguia fazer antes”, é muito afirmativa para a aprendizagem! Ora, como digo costumeiramente, “ninguém pode aprender o que já sabe”.

Reflita: se o treino é de repetição “por si só”, então não ensina a ir além e a improvisar. Logo, não gera a necessidade de os jogadores desenvolverem novos recursos. Isso, por si só, bastaria para se priorizar, no treino, práticas desafiadoras.

 

Condicione a improvisação

 

Repetir, sem dúvida, condiciona. Mas, “por si só”, não aperfeiçoa. Ora, não dá para negligenciar isso! Ainda mais quando se sabe que os melhores jogadores são os que improvisam. Logo, o problema não é repetir, mas “o que” e “como” repetir.

Portanto, se é para repetir, que se repitam as ações de jogo (“o que”) sob desafios (“como”), de modo que os jogadores repitam a oportunidade de produzirem soluções criativas (“o que”), ou seja, originais, flexíveis, adequadas. As dinâmicas de treino (“como”) precisam garantir essa possibilidade; precisam conter a diversidade, o risco e a incerteza. Repita isso mais que qualquer outra coisa. A repetição, nesse caso, condicionará a capacidade de improvisar; de resolver problemas. Aprender desse modo, porque mais desafiador, ficará mais divertido. E, porque mais divertido, ficará mais sério.

Quem deixa de aprender, desaprende

 

O fato é que as rotinas de treino, que expressam um desempenho automatizado e sem erros, dão uma falsa impressão de consistência. No fundo, para o aprendizado, para o melhor desempenho, essas rotinas são preocupantes. Por quê?

Leia com atenção o que disse Benedict Carey, no livro “Como aprendemos”:

[...] trabalhamos de forma mais eficaz quando alteramos as rotinas (...) Aderir a um ritual de aprendizagem, em outras palavras, desacelera nosso progresso.

Adicione a isso, outra explicação de Ericsson e Pool:

 

[...] uma vez que uma pessoa atinge aquele nível “aceitável” de desempenho e automatização, os anos adicionais não levam ao aperfeiçoamento (...) A razão para explicar esse fato é que aquelas habilidades automatizadas deterioram gradualmente na ausência de esforços deliberados para melhorar.

 

Resumo: se as rotinas de treino desaceleram o aprendizado e deterioram o atual nível de desempenho, então é preciso, intencionalmente, planejar o que se oponha a esses rituais.

 

Sobre a mesa de estudo

 

Se a prática ingênua leva à estagnação; se os rituais de aprendizagem desaceleram o progresso do jogador; se, na ausência de esforços deliberados para progredir, os jogadores pioram o que sabem, então repita as ações de jogo sob desafios. Seja, por assim dizer, um criador de resistências, pois estas exigem de os jogadores irem além e improvisarem. Não fique à espera de um milagre. O milagre de se “desempenhar alguma ação repetidamente e esperar que a repetição por si só vá melhorar o seu desempenho”.

 

Wilton é treinador da categoria Sub-14 no Club Athletico Paranaense

3 Comentários

  1. Nicolas B. Zerloti disse:

    Excelente professor👏

  2. Heber disse:

    EXCELENTE TEXTO PROFESSOR.O GRANDE PROBLEMA DE QUEM TRABALHA NA BASE.ACHA Q A REPETIÇÃO LEVA A PERFEIÇÃO.

    • Wilton Santana disse:

      Bem colocado! Como a perfeição não existe, um caminho promissor é treinar no limite das competências atuais.