Nichos interativos

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Nichos interativos

 

Wilton Santana

 

 

O talento para jogar futebol é uma forma de cultura a qual, para além de se aprender e construir desde cedo, emerge das boas práticas e evolui no contato com ambientes estimulantes.

Júlio Garganta

Compartilho da ideia de que toda criança pode aprender futsal. Vejo isso todos os dias! O que a criança aprende é o resultado direto do seu envolvimento, da sua interação com esse esporte. Depois de alguns treinos é possível constatar certa evolução: aglutinava-se ao redor da bola, mas agora ocupa uma posição; queria a bola somente para si, mas agora a compartilha; perdia a bola facilmente, mas agora a sustenta; não se importava em marcar, mas agora acompanha um atacante. O treino, portanto, tem um papel fundamental. É o que possibilita essas pequenas e progressivas conquistas. Na vida que segue, alguns, não muitos, aprenderão o suficiente para, inclusive, alcançar o alto rendimento esportivo. Nada estava definido previamente. Para saber porquê chegaram, basta olhar para trás. Retrospectivamente.

Mas o que é aprender futsal? É construir conhecimento. Adquirir certa cultura. Literalmente. Essa construção exige vencer as resistências oferecidas pelo ambiente. Adaptar-se. E são muitas! Basta pensar nos possíveis problemas que emergem das interações entre a criança e a bola, os colegas, os adversários, num espaço compartilhado. Incalculáveis. Nesse nicho interativo que será construído o futsal de cada uma. Cada criança, com o que tem, tentará sobreviver às intempéries do ambiente. A seu modo. Cada vez que o ambiente a obrigar a se reinventar para vencer um desafio, para solucionar um problema, ela aprenderá. E mais: se fortalecerá para vencer outros.

Nessa “corrida” da criança por adquirir conhecimento, se apropriar de cultura, nesse caso, certa cultura de jogo, importa que ela esteja envolvida em boas práticas.

 

Boas práticas

Qual o parâmetro para qualificar uma prática? Ou seja, para dizer se é promissora ou não, se é adequada ou não? Como avaliar se o desenho de treino daquele professor/treinador ensina mais sobre futsal do que o de outro profissional? A saída teórica para isso é se questionar sobre o esporte que se ensina. Quais são as suas características peculiares? Por que ele “é o que é”? Ao se fazer isso, levantamos a lógica interna do esporte. Vamos lá. O futsal é um jogo e, como tal, dado à incerteza, à imprevisibilidade. Também é dinâmico, ou seja, a bola e os jogadores se movimentam constantemente. Seu espaço de jogo é comum e, ainda, escasso. Ter pouco espaço para jogar, facilita uma marcação intensa, o que obriga os jogadores a decidir o que fazer num curto espaço de tempo e a circular a bola. Além disso, não poucas vezes, eles enfrentarão os desequilíbrios numéricos. Imagine o constrangimento dessas características sobre o comportamento cognitivo-gestual dos jogadores! Estar imerso nesse ambiente demandaria uma inteligência apurada, não? Por isso, desde cedo, é preciso aprender a jogar junto para atacar e para defender. É preciso aprender a antecipar as intenções alheias!

Por tudo isso, uma boa prática não pode esconder da criança a convivência com os elementos estruturais do jogo – o colega, o adversário, a bola, o espaço, as metas, as regras – sob o risco de afastá-la da sua lógica tática – o ataque, a defesa, as transições. Aí está o parâmetro para qualificar a prática: se esta contempla a lógica interna do jogo, diria que é promissora. Se a descarta, diria que não.

 

Nesse nicho interativo que será construído o futsal de cada criança.

 

Reconhecer a necessidade de se aproximar a lógica didática (como se ensina) da lógica interna do jogo (estrutural e tática/funcional), é o primeiro passo para se ensinar bem futsal. O segundo passo é compor esse ambiente de aprendizado. Dotá-lo de uma complexidade possível, de modo que as crianças aprendam a jogar dentro das suas possibilidades. Criar ambientes estimulantes.

 

Ambientes estimulantes

O ambiente é estimulante quando a criança é protagonista. Ela não fica, na aula, no treino, à espera de um comando de voz sobre o que fazer. Ela não é uma mera expectadora. Ao contrário, tem liberdade para se expressar, decidir, atuar, criar, segundo suas possibilidades. O ambiente estimulante é provocativo. No bom sentido, é claro: tem a virtude de solicitar a atenção da criança para o que faz. Fisgá-la. Atraí-la. Desafiá-la. Interessada no que faz, enredada pelo o que se propõe, a criança poderá evoluir. Aprender, a cada dia, um pouco mais sobre como jogar futsal. Adquirir cultura. Cultura sobre como jogar.

O desafio do professor é criar esse ambiente. A dica é propor situações em que as crianças tenham problemas para resolver. Problemas possíveis, pois só se pode exercer protagonismo quando se pode decidir, atuar, criar, se expressar. O desafio deve ser compatível. Nada tão fácil, que ela resolva facilmente; nada tão difícil, a ponto de inviabilizar sua atuação. Precisa ser algo possível, mas que represente problemas, que solicite empenho, que apresente erros.

 

Wilton é professor na Universidade Estadual de Londrina, onde ensina Futsal e Pedagogia do Esporte.

2 Comentários

  1. Jânio Silva disse:

    Excelente, professor.
    Essa visão contextualizada nos ajuda muita na compreensão do ensino. Parabéns.

    • Pedagogia do Futsal disse:

      Valeu, Jânio! Gostei da palavra “contextualizada”! É exatamente isto: trata-se de um ensino contextualizado contra um ensino descontextualizado.