Construções pedagógicas

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Construções pedagógicas

 

 

Wilton Santana

 

É sempre muito inquietante pensar o método. Todos os que ensinam sabem disso. O modo de ensinar é uma mistura de racionalidade e sensibilidade. A pedagogia é isso. O modo de ensinar está “contaminado” pela nossa biografia, que compõe um sistema de crenças, paradigma, cosmovisão. E sempre é bom lembrar que isso está em curso: o que foi praticado e o que se pratica; o que se viu e o que se vê; o que se ouviu e o que se ouve; o que se leu e o que se lê; o que se discutiu e o que se discute; o que se aplicou e o que se aplica.

 

Convicção e dúvidas

Tenho dúvidas e convicções sobre como ensinar. E ensino faz 30 anos. Minha convicção: persigo um método que gere autonomia. Anseio por um método que desencadeie no outro a capacidade de atuar inventiva e racionalmente. Um método que permita jogar em complexidade sem abandonar a simplicidade: a desordem na ordem, as rupturas na regularidade, o singular no plural, a criatividade na organização. Um método que promova o jogo livre e organizado, como escrevi há 14 anos. As dúvidas são sobre como fazer isso.

 

O que ensinar?

O que importa. Importa jogar. Quem ensina a jogar ensina bem. Quem aprende com quem ensina a jogar, aprende bastante, pois aprende o que importa. Nunca disseminarei uma metodologia fora do jogo, analítica, mutiladora, simplista. A rua, antes da universidade, me ensinou isso. A lição foi aprendida organicamente. Eu ensino a jogar. Escrevo e dou aulas para multiplicar isso. Em muitos casos, meus textos e aulas são para que as pessoas desaprendam o que sabem. Desaprender é um ato de coragem. Um ato litúrgico: ouvir/ler, criticar, rever, desaprender, aprender. Movimento. Busca.

 

Contra uma pedagogia da escada

Célestin Freinet foi um pedagogo francês que viveu 69 anos. Ele ensinava crianças. Apostaria que ele também tinha dúvidas sobre como ensinar. Mas parte das suas convicções está aí nesses cinco parágrafos.

 

O pedagogo prepara minunciosamente os seus métodos e, segundo dizia, estabelecera cientificamente a escada que permite o acesso aos diversos andares do conhecimento; medira experimentalmente a altura dos degraus, para adaptá-la às possibilidades normais das pernas das crianças; arranjara, aqui e ali, um patamar cômodo para se retomar o fôlego, e um corrimão benévolo amparava os principiantes.

E o pedagogo zangava-se, não com a escada, que, evidentemente, fora concebida e construída com ciência, mas com as crianças que pareciam insensíveis à solicitude dele.

Zangava-se porque tudo acontecia normalmente quando ele estava presente, vigiando a subida metódica da escada, degrau por degrau, tomando fôlego nos patamares e segurando no corrimão. Mas, se ele se ausentava uns momentos, que desastre e que desordem! Apenas continuavam a subir metodicamente, degrau por degrau, segurando no corrimão e tomando fôlego nos patamares, os indivíduos que a escola marcara suficientemente com a sua autoridade, como os cães de pastor que a vida treinou para seguir passivamente o dono e que se resignaram a não mais obedecer ao seu ritmo de cães transpondo matas e atalhos.

O bando de crianças retomava seus instintos e as suas necessidades: uma subia a escada de quatro, engenhosamente; outra tomava impulso e subia os degraus de dois em dois, saltando os patamares; havia mesmo as que tentavam subir de costas, adquirindo até algum desembaraço. Mas sobretudo – incrível paradoxo – havia aquelas, e eram maioria, para quem a escada se mostrava desprovida de atração e aventuras, e que, contornando a casa, segurando-se nas calhas, saltando as balaustradas, chegavam em cima num tempo mínimo, muito melhor e mais depressa do que pela escada pseudometódica; uma vez lá em cima, escorregavam pelo corrimão… para recomeçarem a ascensão apaixonante.

O pedagogo persegue os indivíduos obstinados em não subir pelos caminhos que considera normais. Mas terá ele perguntado a si mesmo, por acaso, se essa ciência da escada não seria uma falsa ciência e se não haveria caminhos mais rápidos e mais salutares, em que se avançasse por saltos e largas passadas? Se não haveria, segundo Victor Hugo, uma pedagogia das águias que não sobem pela escada? (p.11-12)

Ao menos para mim, é sempre provocador o seu discurso. Este está no livro “Pedagogia do bom senso”. Agora está no seu coração, na sua mente, na sua biografia em curso.

 

Wilton é professor na Universidade Estadual de Londrina, onde ensina Futsal e Pedagogia do Esporte.

3 Comentários

  1. Pablo Ferreira Silva disse:

    Show!
    E o que mais me chama a atenção: não temos domínio do que pretendemos ensinar. Cada um receberá os ensinamentos de maneira diferente.
    Entender isso é reconfortante, apesar de inquietante.

  2. Fabrício disse:

    Sensacional!!

  3. EVANDRO FAUSTINO SANTOS disse:

    O que mais me chama atenção é quem lê, estuda, fica inquieto sobre o ensinar a cada dia busca mais informações e tem suas dúvidas, enquanto alguns que se limitam a prática de anos atrás como solução, como se as pessoas, as crianças não mudassem, com certezas absolutas!