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Inventar o momento

 

Wilton Santana

 

 

A expertise dos grandes jogadores é intrigante. Basta um átimo de tempo, uma janela de oportunidade, para que encontrem decisões inusitadas e rompam a ordem aparentemente estabelecida. Como disse Tostão certa vez: “O grande jogador tem a capacidade de inventar o momento”.

No seu livro “Na hora da decisão: somos sujeitos conscientes ou máquinas biológicas?”, Mauro Maldonato, reportando-se a um mestre de artes marciais, descreve um pouco dessa quase imaterialidade do grande jogador:

 

Era possível dizer que ele via sem olhar. Percebia as intenções do adversário mesmo tendo renunciado a qualquer presença. Toda vez que o antagonista se lançava rápido e resoluto contra o mestre, ele já estava em movimento (…) a precisão geométrica dos movimentos era absolutamente espontânea. As ações passavam de um estado de voluntariedade a outro de livre instinto, aderindo às mais diversas situações (p.69).

O que estaria por detrás de uma ação com “precisão geométrica” e que “adere às mais diversas situações”?

 

O treino

 

Um pianista habilidoso que, por semanas ou meses, retoma a mesma partitura, ignora o que o seu cérebro está fazendo. Não sabe absolutamente nada dos espantosos diálogos elétricos e químicos que comandam os músculos de sua mão ao executar uma escala harmônica ascendente. Ele apenas sabe quantas dificuldades vai encontrar se não executar infinitas vezes determinado trecho. A certa altura, porém, deixará de refletir. As dificuldades serão apenas lembranças. Bastará, então, apoiar as mãos no teclado para os dedos escorregarem ágeis e seguros (p.75).

Perceba a interdependência entre o treino e o desempenho: só será possível “apoiar as mãos no teclado para que os dedos escorreguem ágeis e seguros”, se a “partitura for retomada por semanas, meses”; se “determinado trecho for executado infinitas vezes”.

Perceba algo mais: “A certa altura, porém, deixará de refletir”. Como assim?

 

Um com a ação

O fato é que essas horas acumuladas de treino, esse empenho, fez com que o grande jogador adquirisse os chamados automatismos inconscientes – algo que todos nós manifestamos, por exemplo, ao andar ou dirigir um carro, quando abandonamos o pensamento consciente e apenas andamos ou dirigimos.

 

O abandono de toda intencionalidade nos permite tornarmo-nos uma coisa só com a ação, improvisando segundo as necessidades do momento (p.68).

Pode-se dizer que, nesse estado, o grande jogador é “puro movimento”, torna-se um com a ação, “para de pensar e só joga”. Ocorre mais ou menos o seguinte: ele se esvaziará de preocupações e de distrações; será o jogador mais atento, ainda que não procure intencionalmente os sinais; será o mais concentrado, ainda que descontraído; não perseguirá nada em particular, mas encontrará o que importa.

 

Precisamente como acontece com um ator, um bailarino ou um músico quando perfeitamente identificados com aquilo que estão fazendo (…) a ação é entregue a automatismos inconscientes (…) Uma ação rápida e eficaz solicita que se passe da consciência à inconsciência. Mesmo a mínima hesitação reflexiva pode interromper os automatismos e enfraquecer a eficácia e a precisão da ação (p.67-68).

Pensamento e ação fundem-se e o jogador está livre para seguir o “fluxo impermanente” do jogo.

 

Ampla vantagem

A vantagem competitiva do grande jogador está estabelecida: imerso no ambiente caótico do jogo, como todos os demais jogadores, mas liberado do “esforço de pensar as jogadas”, torna-se mais “ágil”, pois poderá pressentir, intuir o que ainda não aconteceu. Enquanto os demais jogam no presente, ele atua no futuro, fazendo previsões.

 

Os atletas experientes utilizam com muita frequência indícios visuais para intuir as ações do adversário. Sobretudo nos momentos críticos – e muitas vezes contra as exortações dos treinadores, que convidam a manter sempre alta a atenção geral –, concentram-se em informações como a posição dos adversários, dos companheiros de time ou dos objetos.

 

Um pingo é letra

 Os jogadores que conseguem “inventar o momento”, ou seja, “improvisar segundo as demandas do momento”, somente o fazem porque prefiguram algo sobre o evento em curso. Prefigurar é antever. Supor antecipadamente.

 

A urgência obriga-o a fazer previsões com base em informações parciais. Do contrário, sua performance seria lenta e ineficaz. Apenas uma previsão do evento permitirá que o atleta antecipe a própria ação e se encontre, por assim dizer, no lugar certo e na hora certa, evitando custos físicos e psicológicos relevantes (p.64).

 

Perceber já é agir

 Jogando no futuro, esses jogadores parecem ter “todo o tempo do mundo” para decidir. Mas o fato é que a percepção que têm do que se passa já é ação!

 

(…) a percepção, mais do que uma elaboração de nossas sensações, seria uma simulação antecipada da ação (…) o cérebro extrai dos seus arquivos esquemas de movimento e, ainda antes de executá-los, prepara as ações mais adequadas à situação. Seja qual for sua codificação, uma ação implica inevitavelmente antecipação de situações (p.63).

 

Registros qualitativos

A memória se trata das representações mentais internas de eventos semelhantes. Não idênticos! Mas parecidos. Nesse sentido, Maldonato defende que “quanto mais informações memorizamos, mas eficaz será a ação (p.67)”. Ora, se de fato for isso, isto é, se as informações registradas na memória tornam mais eficaz a ação, então me parece suficientemente plausível que a qualidade do processo de treinamento seja decisiva. Os registros precisam ser qualitativos.

 

Um longo e duro caminho

Não pode passar despercebido que seguir o “fluxo impermanente” do jogo, sendo “um com a ação”, demanda, antes, aprender a jogar intencionalmente, refinar o pensamento tático, a consciência tática, reconhecer “atalhos” no jogo.

 

O caminho é o exercício duro. Apenas dessa forma concentração, automatismo e imaginário podem fundir-se na ação em andamento (p.67).

Portanto, jogadores inexperientes não são “um com a ação”.

 

Se é verdade que para os veteranos a ação é entregue a automatismos inconscientes, para os novatos é necessário prestar plena atenção ao desempenho (p.68).

 

Partida e chegada

O grande jogador demonstra que aquele esporte, no qual todos se iniciam de forma rudimentar, pode chegar a ser praticado de forma aprimorada, complexa, extraordinária. Sua expertise tem como ponto de partida o esforço, o treino, a aquisição de conhecimento, o empenho consciente. E tem como ponto de chegada a sua fusão com a ação em andamento, a primazia do pensamento intuitivo, veloz, inconsciente, a adesão ao fluxo instável do jogo.

 

Wilton é professor na Universidade Estadual de Londrina.

2 Comentários

  1. Arli Ramos de Oliveira disse:

    Wilton, você é um expert em perceber essas ações e preconizar o seu rumo… na vida do esporte e no esporte da vida!… Parabéns! Continue crescendo em perspicácia, inteligência e simplicidade… Possivelmente, nisso consiste a eficiente percepção do verdadeiro expert… Tornar o simples mais bonito, criativo, algo que se renova a cada momento. Que sua vida seja um processo cumulativo de bons e enriquecedores momentos, capazes de tornar melhor o seu mundo e o mundo ao seu redor. Do amigo e fã Arli…

    • Arli, obrigado pelo carinho e consideração que me destina desde a graduação em Educação Física, quando foste, seguramente, um dos meus melhores professores. Parabéns pela sua notável trajetória e capacidade de trabalho e, igualmente, por suas atitudes positivas no trato diário com todos os colegas e alunos. Seguimos, professor!