Qual o maior legado para o futebol do jogador formado no futsal?

Construções pedagógicas
11 de dezembro de 2018
A armadilha da desinformação
26 de fevereiro de 2019

Qual o maior legado para o futebol do jogador formado no futsal?

 

 

Wilton Santana

 

 

Tentar descrever o talento coletivo dos jogadores de futebol brasileiros é como tentar descrever a lei da gravidade. Podemos medi-lo – as cinco copas do mundo, os quase novecentos jovens talentos contratados a cada ano por clubes europeus. Podemos enumerar a procissão de superastros como Pelé, Zico, Sócrates, Romário, Ronaldo, Juninho, Robinho, Ronaldinho, Kaká e outros que foram merecidamente eleitos melhores jogadores do mundo (p.24) […] Mas como o Brasil produz tantos grandes jogadores? (p.25) A resposta surpreendente é de que o país produz um sem-número de grandes jogadores porque, desde a década de 1950, os brasileiros têm treinado de um modo particular, com uma ferramenta específica que aprimora a habilidade no manejo da bola mais depressa que em qualquer outro lugar do mundo (p.26) […] um jogo estranho, semelhante ao futebol […] Esse jogo se chamava futebol de salão, denominação hoje abreviada para futsal (p.36).

 

As palavras acima são de Daniel Coyle, no seu belíssimo livro “O código do talento”. Para o autor, o futsal seria a “arma secreta” para a produção de tantos jogadores brasileiros de futebol talentosos. Concordo. São muitos os exemplos.

Diante disso, gostaria, neste texto, de levantar a seguinte questão: Qual o maior legado para o futebol do jogador formado no futsal? É uma questão atual e complexa. Atual porque, cada vez mais precocemente, os jogadores de futsal migram para o futebol – há, inclusive, um interesse cada vez maior dos clubes de futebol em tornar o futsal, de forma sistematizada, parte do processo de formação do jogador. Complexa porque muitos fatores convergem na tentativa de explicar isso. Por exemplo, seria a capacidade de o jogador raciocinar rápido e/ou de driblar em espaços curtos? Seria a experiência competitiva, dado o fato de que, desde cedo, disputa competições acirradas? Seria uma boa formação tática individual? Convenhamos, é plausível a veracidade desses, e de outros fatores e, ainda, que a presença de um não exclua outro. Dentro dessa perspectiva sistêmica, portanto, de incompletude, gostaria de defender meu ponto de vista.

 

Autonomia e dependência

Para tanto, gostaria de que você, inicialmente, observasse a figura 1, que propõe uma classificação tática: individual, grupal e coletiva.

 

Fonte: Paula Figueiredo Ângela de Paula, Pablo Juan Greco e Pablo Ramon Coelho de Souza. Texto: “Tática e processos cognitivos subjacentes à tomada de decisão nos jogos esportivos coletivos”.

 

A tática individual representa a autonomia do jogador. Ou seja, como este “gere” e “resolve” os problemas durante o jogo. O “gere” é a solução mental, que envolve a sua capacidade de incluir-perceber-analisar “o que” acontece, “onde está” e decidir “o que”, “quando”, “com quem”, “por que” fazer, “aonde ir”. O “resolve” é a solução motora (execução). Guarde isto: a autonomia não é tática ou técnica, mas sempre tático-técnica, isto é, toda intenção tática é suportada por um conjunto amplo e variado de gestos técnicos, os quais, por sua vez, são empregados com alguma intenção tática. São coisas inseparáveis.

Entretanto, para além da autonomia do jogador, há outro sentido na figura: o de dependência. Esta é representada pelas conexões estabelecidas entre os jogadores, que suportariam o modo de a equipe jogar. Na prática, todos têm de se afetar, de se misturar, de interagir, para que os sistemas ofensivo e defensivo funcionem. As conexões, portanto, não excluem as individualidades, mas exigem a sua associação. Ou seja, embora o pensamento tático pertença ao jogador, que toma suas decisões (tática individual), estas estariam obrigatoriamente relacionadas com as dos parceiros de jogo, marcando assim as ações táticas de colaboração (tática grupal), que dariam um sentido coletivo para a equipe (tática coletiva). Nesse sentido, o jogador tem autonomia, mas é dependente. Trata-se da parte imersa no todo; da autonomia imersa na dependência; do individual imerso no sistêmico. Foi o que Jean-Francis Gréhaigne, no seu livro “A organização do jogo no futebol”, reportou sobre a tática individual: “Conjunto de ações individuais empregadas de maneira consciente por um jogador em suas interações com seus companheiros e seus rivais no ataque e na defesa (p.140)”.

 

A inevitável dinâmica evolutiva da tática individual

Claude Bayer é um autor estimado entre os estudantes de Pedagogia do Esporte. Ele faz uma abordagem estrutural do ensino dos jogos esportivos coletivos, ou seja, ele “se debruça sobre o estudo dos canais de comunicação, quer dizer, sobre as inter-relações vividas pelos jogadores no seio do coletivo” (p.71). No seu livro clássico, “O ensino dos desportos coletivos”, Bayer, entre outras coisas, explora a formação tática individual. A certa altura diz que

 

A intenção tática individual não é uma entidade em si. Na sua dinâmica evolutiva, as diferentes intenções táticas individuais completam-se, articulando-se umas com as outras no funcionamento da estrutura coletiva, no que os especialistas dos desportos coletivos chamam sistema de jogo (p.67).

 

O que em particular me chama a atenção nas suas palavras é o fato de as diferentes intenções táticas individuais completarem-se, articularem-se umas com as outras. É isto: se o jogador está “em jogo”, a sua comunicação se dá mediante as interações que estabelece com os demais jogadores. Inevitável. Chegamos ao maior legado.

 

O maior legado

Por isso, não tenho dúvida de que o treino deve atualizar taticamente o jogador, desde a iniciação, criando recursos táticos individuais que possam gerar autonomia – por exemplo, um iniciante, logo de saída, deve aprender que, ao ter a bola, precisa “enquadrar o jogo” (tática individual) para recolher informações do ambiente e poder tomar a melhor decisão e, numa posição defensiva, colocar-se entre o seu atacante direto e o gol (tática individual), abordando-o intencionalmente quando estiver com bola (tática individual). Mas tenho dúvida de que a maior herança que o treino pode deixar para o jogador seja o seu repertório tático individual. Por quê? Por causa da relação autonomia-dependência; por causa da inevitável “dinâmica evolutiva” expressada por Bayer. Logo, me parece que a maior herança do treino consiste em aprender a articular, a associar as intenções próprias às dos outros, constituindo conexões, combinações, parcerias. É isso o que suportaria o modo de o jogador atuar e não a tática individual “em si”. É isso que promoveria a autonomia tática para ele ser “um com os demais”. Por isso, o maior legado que o treino pode deixar para o jogador não é o aprendizado tático individual “em si”, mas o “jogo associativo, de combinações”, que não exclui, mas exige a evolução das intenções táticas individuais.

Como seria isso na prática?

 

Dois exemplos práticos da articulação das intenções táticas individuais

Sei que vou dar um salto: da formação para o alto rendimento, mas a ideia é evidenciar a articulação das intenções táticas individuais no seio de uma equipe. Observe a figura 2. Trata-se de um desenho zonal defensivo.

Brasil x Uruguai, XI Grand Prix de Futsal (2018)

 

Defender à zona é a expressão coletiva da tática. Mas, para que isso funcione, os jogadores terão que estabelecer uma série de conexões (dependência), que por sua vez, são caracterizadas por uma série de atitudes individuais (autonomia). Observe: quem está na 1alinha defensiva e aborda o portador da bola, exagerou a diagonal, de modo a induzir o atacante a se deslocar com a bola para o fundo, para cima de quem está na 2alinha e adiantou a cobertura. A combinação dessas duas atitudes é o que poderíamos chamar de ajuda (tática de grupo). Por sua vez, os defensores do lado frágil, que não está sendo atacado, “têm tudo a ver com isso”, isto é, quem está na 1alinha defensiva terá de baixar a sua linha quando o atacante entrar com a bola, formando um triângulo defensivo com os defensores que atuam na recuperação da bola; já quem está na 2alinha defensiva, do lado oposto, precisará se aproximar do centro, realizando a cobertura de quem saiu para dar cobertura. Esses movimentos individuais em simultâneo, associados, é o que dará compactação às linhas defensivas e a organização defensiva coletiva para a equipe.

Agora observe a figura 3, em que a equipe está em organização ofensiva contra uma defesa baixa.

Brasil x Uruguai, XI Grand Prix de Futsal (2018)

 

Do ponto de vista individual, todos os jogadores empregam uma intenção tática (autonomia): “jogar em largura”, “passe de ala a ala”, “aproximar” fazendo um corta-luz no defensor da 1alinha, “apoio em profundidade”. Porém, é exatamente a combinação entre eles (dependência), o quanto conseguem “se comunicar”, associando suas intenções táticas, o que possibilitará a manipulação da defesa.

 

Efeito prático

A principal implicação prática da teoria exposta é criar um cenário de treino em que ensinar a interagir seja primazia; em que os gestos técnicos tenham de ser empregados com algum tipo de intenção tática; em que os jogadores tenham de associar suas intenções às intenções dos demais. Isso ensinará os jogadores a gerir e resolver problemas de jogo, a construir as inevitáveis combinações táticas. Logo, afirmaria à questão inicial, de que seria a capacidade de interagir, que não exclui as atitudes individuais, mas exige que estas se articulem, o maior, mas não exclusivo, legado para o futebol do jogador formado no futsal.

 

Um aforismo

O jogador, se bem formado no futsal, não “bate pelada” no campo.

 

Wilton é professor do Departamento de Ciências do Esporte da Universidade Estadual de Londrina.

6 Comentários

  1. Alessandro Pavanetti disse:

    Será que podemos dizer que a autonomia no jogo está ligada as intenções e ações tomadas por cada jogador… Então!? Ou seja, isto seria a equação: Autonomia = Intenções (táticas) + ações (técnicas)!?

  2. Marcos Vinícius Russo dos Santos disse:

    Ótimo texto! A genialidade do jogador brasileiro acontece no centro do jogo, e para isso o futsal é muito eficiente, pois coloca o jogador o tempo todo em situação de centro de jogo. Isso melhora a relação do jogador com a bola, melhora a capacidade de solução de provas em pequenos espaços, e sobretudo a solução de problemas em objetividade, para definição da jogada. Qualidades que para o campo São muito úteis no terço final do campo. Parabéns pela reflexão!!

  3. Dennis disse:

    Que texto fenomenal. Muito obrigado por mais essa contribuição de pensamento Prof. Wilton. Sem palavras

  4. Excelente artigo e excelente profissional.

  5. JOSE LUCIANO MENDES SALES disse:

    Como sempre, Brilhante!!!

  6. José Eduardo Fayan disse:

    Admiro seu trabalho, é um excelente artigo aprendo muito lendo e aplico nas minhas aulas de Futsal…