Um “ator” multifuncional

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Um “ator” multifuncional

 

Wilton Santana

 

 

Há pouco tempo escrevi que a relação com a bola se constitui numa competência essencial na formação do jogador de futsal. Que a verdadeira habilidade do jogador está exatamente na capacidade de ele responder com bola às alterações do ambiente. Neste texto, abordo outra competência. Dessa vez, tratarei das interações táticas, ou seja, da capacidade de os jogadores estabelecerem relações quando jogam, de se comunicarem. Interagir taticamente é o “jogar com”. No caso, com o colega para atacar (interações ofensivas) e com o colega para defender (interações defensivas).

De fato, toda ação no jogo de futsal se trata de uma interação, porque influenciada pelos colegas e adversários. Ou seja, o que o jogador decide fazer afeta os demais e o que os demais decidem fazer afetam aquele. A relação é sistêmica. Isso explica muito bem o desempenho dos jogadores no jogo. Por exemplo, Messi, extraordinário no Barcelona, não consegue sê-lo na seleção argentina. O fato é que o seu desempenho, sendo o resultado direto das suas interações com os demais colegas, será um no Barça e outro na Argentina, porque ele atua com jogadores diferentes, que expressam intenções diferentes, sob um modelo de jogo diferente.

Jogar é interagir. Logo, jogar futsal demanda aprender a interagir com a bola, os colegas, os adversários, num determinado espaço, com os objetivos de fazer e de evitar gols. Tudo em simultâneo. Isso desde cedo.

 

Agir interagir

Jogadores muito inexperientes agem, mas ainda não interagem. Quem apenas age ainda não aprendeu a integrar as suas intenções às alheias. Ainda não considera o outro ao tomar decisões. Para ser bom jogador, é preciso deixar de agir e passar a interagir. Isso leva tempo.

 

No começo, o jogo anárquico

Iniciantes tendem a revelar todo o seu egocentrismo quando jogam: correm atrás da bola e, se a detêm, têm dificuldade em compartilhá-la. Quando a perdem, têm dificuldade de marcar. Estão, invariavelmente, mal posicionados. Para estes, muitos treinos que os desafiem a passar a bola, a marcar alguém, a ajudar alguém com bola ou que foi driblado, a manter uma posição. É preciso aprender a reconhecer o outro para atuar junto com ele. Cooperar. A superação do egocentrismo, que é tão somente uma incapacidade de reconhecer o outro, vem daí. Essas práticas melhorarão o nível de jogo dos iniciantes. Enquanto isso não acontecer, nada de jogar bem. Nessa “corrida” para aprender a interagir, os treinadores precisam criar cenários de treino que possibilitem aos iniciantes desempenharem os quatro papéis táticos centrais. O jogo, no presente e no futuro, exige versatilidade tática.

 

Um “ator” multifuncional

Gosto dessa analogia entre os papéis táticos que os jogadores precisam desempenhar e a versatilidade exigida dos atores. Nesse sentido, há “papéis” ofensivos e defensivos que toda criança precisa aprender a “interpretar” para aprender a interagir. Ofensivamente, ora se é quem “joga com a bola” e ora se é quem “joga com quem tem a bola”. Defensivamente, ora se é quem “marca quem tem a bola” e ora se é quem “marca quem não tem a bola”. O iniciante precisa aprender a ser um “ator” multifuncional.

Ao “interpretarem” os papéis táticos, os jogadores aprenderão a “compreender e responder” quatro perguntas básicas:

– O que faço quando tenho a bola?

– O que faço quando o meu colega tem a bola?

– O que faço quando marco quem tem a bola?

– O que faço quando marco quem não tem a bola?

Há muitas boas respostas para solucionar essas questões, que vão se alterando segundo a localização da bola e o momento do jogo, ficando cada vez mais específicas. A boa notícia é de que cada jogador pode “atuar” de forma criativa nesse “cenário”. Já se sabe que não se trata de uma coreografia, mas de uma escola de “teatro” que valoriza a improvisação! Quando o “diretor” conhece taticamente o jogo, saberá colocar os iniciantes sob desafios genuínos que lhes possibilitarão, com o acúmulo de horas de treino e jogos, “atuarem” cada vez melhor.

 

Depois, o jogo descentrado

Aprendendo a ser um “ator” multifuncional, os iniciantes aprenderão a atuar juntos, a sair do centro e abandonarão o jogo anárquico. Passarão a jogar descentrado, o que demanda incluir o outro. Entre outras coisas: a circular a bola, a passar a bola e se movimentar para receber, a ocupar uma posição tática, a marcar alguém, a ajudar alguém que foi superado, a atuar com um sentido coletivo. Ainda faltarão a mobilidade e o repertório de um “ator” com mais conhecimento tático. Para chegar a isso, será preciso “ensaiar” por um bom tempo.

 

O ensaio

Para que o jogo descentrado substitua o anárquico, três dicas: (1) proporcionar jogos nos quais seja possível vivenciar os papéis táticos, (2) minimizar a pressão defensiva, dando mais tempo para o portador da bola encontrar uma boa decisão e (3) criar regras modificadas que acentuem algumas atitudes táticas.

 

Joga-se 1×1+2. Regra modificada: o gol só vale se for a um toque (de primeira). Efeitos esperados: de que o jogador com bola enquadre o jogo e prepare o gol para os colegas; de que estes se ofereçam para quem tem a bola a fim de fazer o gol.

 

Sob esse desenho de treino, a criança com bola, por exemplo, teria de resolver, jogando, problemas do tipo: “Passo a bola ou enfrento o marcador?”, “Levo a bola sobre o marcador e a passo ou a passo agora?”, “Depois de passar a bola, corro para frente ou permaneço atrás?”.Quem está sem bola e ataca pelas laterais: “Quando a bola está no centro, fico onde estou, corro para frente ou me aproximo para receber?”, “Se a bola estiver na outra ala, aonde vou?”. Para quem está sem bola e defende: “Tento recuperar a bola ou fico entre eles para cortar um passe?”; “Se a bola passar de mim, deixo o goleiro enfrentar o atacante e marco alguém ou corro para aonde a bola foi enviada”?; “Se recuperar a bola, ataco rapidamente ou circulo a bola?”. Para o goleiro do time que defende: “Jogo adiantado ou fico na meta?”; “Se a bola passar do marcador, saio para combater ou fico no gol?”; “Se eu defender, lanço a bola para frente e rápido ou a reponho na minha defesa para começar o ataque?”. Para o goleiro do time que ataca: “Jogo adiantado ou fico no gol?”; “Se meu colega perder a bola, saio do gol ou permaneço?”.

 

Wilton fez o mestrado e o doutorado em educação física na Unicamp (SP). Nesse período publicou, pela Autores Associados, o livro “Futsal: apontamentos pedagógicos na iniciação e na especialização”.

 

 

1 Comentário

  1. Diego Maranha disse:

    Absolutamente pontual. A simples ideia de atacar o gol adversário quando se esta com bola e defender a própria meta quando se está sem esta é uma vitória e tanto nas idades iniciais. O Xadrez do nosso jogo tem que estar em todas as categorias, claro de maneira adaptada a cada realidade!