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Wilton Santana

 

 

Uma das coisas mais desafiadoras que me imponho nos cursos sobre pedagogia do futsal é requisitar que os organizadores tragam um grupo de crianças para a parte prática. Isso é sempre desafiador em função de eu não as conhecer! Quais suas idades, gostos, habilidades, preferências, conhecimento? Diante disso, quais “botões” apertar? Entretanto, como mencionado, proponho-me esse tipo de “jogo” exatamente pelo o que ele me traz: a oportunidade de “jogar”, arriscar-me, crescer, aprender.

Você poderia pensar que não há riscos, por conta a experiência que acumulo e tal, mas, honestamente, te diria que aquilo que a gente sabe ajuda, mas quase sempre é insuficiente. O que acontece naquele momento, quando as crianças chegam e se estabelecem, acredite, é singular e, por isso, muito exigente. Vou contar algo para ilustrar.

Certa feita, o Ferretti me convidou para dar um curso no seu estágio. Numa noite, falei sobre o processo de formação técnico-tática do jogador de futsal; noutra, pedi que ele trouxesse um grupo de crianças da sua escolinha, da faixa etária que ele quisesse, a fim de que eu pudesse tornar “real” aquela teoria da noite anterior. Ele, gentilmente, disponibilizou 24 iniciantes, entre 6 e 15 anos. Portanto, jogadores que não poderiam atuar juntos, porque muito distantes no nível de aprendizagem e desenvolvimento (ou desenvolvimento e aprendizagem), enfim, crianças não são adolescentes e estes não são aquelas.

E aí começou o “jogo” do qual falei há pouco: precisei improvisar, criar o cenário para o aprendizado, organizar e encorajar as crianças, mantê-las focadas. Evidentemente que a primeira atitude que tomei foi conversar com elas e dividir a turma em dois grupos de faixas etárias, experiências e expectativas aproximadas. Um grupo daqueles que tinham entre 6 e 10-11 anos e outro entre os 11, 12-15.

Grupos distintos, momentos distintos, práticas distintas. Comecei pelos mais novos, fiz vários jogos, coloquei-os para descansar; trouxe os mais velhos, mais jogos, descanso. Fiz isso umas duas, três vezes, por cerca de quase três horas. Os alunos do estágio assistiram a tudo da arquibancada, para a qual, vez ou outra, dirigia-me a fim de explicar mais detalhadamente porquê fazia o que fazia e abrir para perguntas. Tudo correu bem. Os desafios foram ao encontro das expectativas das crianças. E aí, todos sabem, a aprendizagem deslancha. Brinquedo certo, certeza de interesse e empenho.

Mas atente para isto: numa das vezes em que trouxe os mais novos apliquei o “jogo dos arcos”. Aprendi sua versão original há muitos anos e sua organização é muito simples: um grupo de crianças fica sentado de frente para o outro, cada um sobre as linhas laterais da quadra de voleibol. No centro, entre os grupos, há dois arcos e, dentro destes, uma bola para cada grupo. Enumero as crianças de modo sucessivo (um, dois, três…) e quando chamo um número, por exemplo, “dois”, aquelas crianças que têm esse número, uma de cada time, levantam-se, pegam a bola e cumprem algumas tarefas como, por exemplo, tirar a bola de dentro do arco com o pé, conduzi-la, chutar ao gol, conduzi-la novamente e colocá-la dentro do mesmo arco etc. Vence quem fizer isso primeiro.

Acontece que, modo geral, à medida que o jogo se desenvolve e deixa de representar um desafio, costumo adicionar novidades na atividade, a fim de gerar novos conflitos, os quais, por sua vez, possam desencadear novos esforços das crianças, culminando em mais aprendizado.

E não foi diferente nesse dia. Pouco tempo depois, acrescentei nova regra: chamei dois números, por exemplo, “32”! Nesse momento, as crianças respectivas deveriam se levantar; o primeiro número (“3”) partiria para a bola e o segundo número (“2”) deveria correr para o gol contrário, a fim de atuar como goleiro e evitar o gol do adversário.

Jogo dos arcos

 

Trata-se do mesmo jogo, mas com outro nível de exigência, de atenção, de concentração, de percepção sobre o que acontece. As crianças levam tempo para entender, cometem erros e o que fazem para resolver esse problema é o que importa. Elas o resolvem falando entre si e comigo. Faço pequenas pausas. Chamo a atenção para o que houve. Explico. Pergunto.

Pois bem, lembre-se de que eu te disse que o grupo mais novo tinha crianças entre os 6 e os 10 anos. O jogo foi rapidamente entendido pelas mais velhas. Mas não pelas mais novas! Como se tratava de uma competição, o erro de uma criança mais nova implicava na perda de pontos para a equipe e aí, meu amigo, as crianças cobram mesmo, chamam a atenção, chamam de burro e por aí vai. Percebi algo nesse sentido com um menino em particular. Ele era mais novo que os demais. Bem mais novo. E, quando eu chamava os números e caía na vez dele, ele sequer se levantava. Aí os meninos caíram em cima. Tentei minimizar o fato, acalmando-os e explicando para o mais novo a exigência do jogo. Mas dava errado novamente. O menino acabou chorando com a cobrança dos demais.

Foi aí, e somente aí, que tomei consciência de que “eu” era o responsável pela má interpretação do menino. Isso porque, ao anunciar os números, o fiz, por exemplo, como “quarenta e cinco” e não como “quatro e cinco”! Ora, o menino estava maduro para entender a 2ª opção (“quatro e cinco”), mas não para a primeira (“quarenta e cinco”), ou seja, tinha recursos para entender a unidade, mas não a dezena! Isso me cortou o coração, mas já era tarde. Perdera o emocional do moleque. Sua coragem tinha dado lugar ao medo, sua descontração à inibição. Fiquei com vontade de sumir! Mas não podia!

Aí resolvi alterar a atividade. Mas antes disso reuni todos os alunos e assumi o meu erro. Contei, como pude, o que acontecera e que eu havia sido imprudente. Abracei o garoto, pedi perdão e disse que a aula continuaria e que ele saberia participar de tudo o que viria pela frente, que seria muito interessante e divertido e que podia contar comigo se não entendesse algo. Ele acreditou, enxugou as lágrimas, motivou-se e terminou a aula refeito.

Aliás, confesso, eu quem pude terminar aquela aula restaurado, pois vi aquele garoto loirinho sorrindo novamente, envolvido, divertindo-se e sendo aceito pelos colegas nos demais jogos.

O perdão, meus amigos, encobre uma multidão de pecados.

Wilton é professor do Departamento de Ciências do Esporte da Universidade Estadual de Londrina.

3 Comentários

  1. Renato Cezar Estevão disse:

    Parabéns Professor,belo texto!
    Fui seu aluno na pós do Gama Filho em Campinas.
    Forte abraço.

  2. vitoriouel disse:

    Parabéns professor!
    Uma boa reflexão.
    Fui sei aluno na graduação na UEL.
    Abraços.